Os alarmantes aumentos nos seus indicadores sugerem que, à medida em que ingressamos no século 21, a obesidade deve ser considerada como uma epidemia mundial.
Estudos recentes que avaliam a prevalência da obesidade (índice de massa corporal [IMC] = peso (Kg)/ altura (m2) 30) sugerem um aumento para 19,8% entre adultos americanos, e que uma maioria da população dos EUA (56,4%) preenche os critérios para sobrepeso (IMC ³25).
No Brasil, a prevalência da obesidade aumentou em 70% entre 1975 e 1989, indicando que o excesso alimentar está rapidamente se tornando um problema mais proeminente do que o déficit.
À medida que os índices de obesidade cresçam, os profissionais médicos, incluídos os psiquiatras, serão chamados para tratar esses pacientes.
Com o objetivo de cumprir com essa obrigação, é crucial que os profissionais em saúde mental tenham condições de entender a natureza da obesidade e seu relacionamento com o funcionamento mental.
Perguntas importantes incluem, entre outras:
1) A obesidade constitui um diagnóstico psiquiátrico legítimo ou é mais bem vista como uma condição médica? e
2) A obesidade deve ser considerada um transtorno alimentar?
Um estudo realizado no Departamento de Psiquiatria, Faculdade de Medicina e Cirurgia da Universidade de Columbia e Instituto Psiquiátrico do Estado de New York, foi apresentada uma visão geral de como melhor conceitualizar a obesidade enquanto diagnóstico e como entender as condições psicopatológicas comórbidas que podem acompanhá-la.
Obesidade: médica ou psiquiátrica
A obesidade é, basicamente, um transtorno do comportamento que reflete um excesso de consumo de comida comparado com o dispêndio de energia.
Visto dessa forma, parece óbvio visualizá-la como um problema autoinduzido que é ou deve ser colocado sob controle volitivo. No entanto, achados recentes sugerem que a contribuição genética para a obesidade é considerável.
Os genes da obesidade podem exercer efeito influenciando os componentes do dispêndio de energia (por exemplo, o índice de metabolismo de repouso) que não estão sujeitos ao controle consciente ou influenciando sistemas (por exemplo, a regulação do apetite) que impulsionam o comportamento consciente.
Pesquisas recentes reforçam a ideia de que mecanismos homeostáticos operam para ajustar o peso de um indivíduo em torno do que parece ser um ponto interno de regulagem. Desvios desse ponto, particularmente na direção da perda de peso, são contrabalançados por alterações compensatórias metabólicas e no controle do apetite.
É importante notar, no entanto, que a vulnerabilidade genética à obesidade pode expressar-se em maior ou menor grau, dependendo das condições ambientais (por exemplo, a disponibilidade de alimentos muito gordurosos), e que o ponto de regulagem do peso pode ser influenciado por estes fatores.
Parece que os comportamentos que levam à obesidade são mais bem explicados por modelos biológicos/ambientais do que por modelos psicológicos e que a visão da obesidade como produto de um déficit da capacidade volitiva ou de um distúrbio psicológico é equivocada.
Ainda que esteja claro hoje que a vulnerabilidade à obesidade é amplamente determinada biologicamente, seus correlatos psicológicos podem ser altamente relevantes para o manejo clínico de indivíduos obesos.
Os pesquisadores e clínicos têm-se interessado há muito tempo pelo estudo do perfil psicológico dos indivíduos obesos.
Na altura dos anos 50, a noção de que as pessoas obesas tinham um tipo de personalidade uniforme já estava sendo contestada, e estudos empíricos mais recentes não detectaram esse tipo de personalidade do obeso.
No entanto, o questionamento sobre se os indivíduos obesos têm maiores índices de psicopatologia dos Eixos I e II é mais complexo. Em estudos de amostras comunitárias, os indivíduos obesos geralmente não têm mais psicopatologia do que os com peso normal.
Em contraste a isso, entre indivíduos obesos que procuram tratamento, vários estudos relataram índices significativamente elevados de depressão.
Índices mais modestos de transtornos de ansiedade (incluindo agorafobia, fobia simples e transtorno de estresse pós-traumático), bulimia, tabagismo e transtorno de personalidade borderline também foram relatados.
Essa discrepância entre amostras comunitárias e clínicas pode refletir a tendência dos indivíduos que sofrem de algum transtorno comórbido de serem mais perturbados e, portanto, mais propensos a apresentar-se para tratamento do transtorno índice.
De qualquer forma, na medida em que os psiquiatras lidam com populações clínicas, o achado de maior depressão comórbida é relevante e deve ser considerado ao se avaliar pacientes que se apresentam para tratamento de obesidade.
Obesidade e transtornos alimentares
À medida que os clínicos e os pesquisadores procuraram entender a relação entre a obesidade e uma série de transtornos psiquiátricos, também tentaram avaliar se a obesidade se constitui ou não em um transtorno alimentar, ou seja, se existe algo patológico no comportamento alimentar dos indivíduos obesos.
Pesquisas com a técnica da água duplamente marcada (técnica para avaliar certos índices metabólicos) mostraram que os indivíduos obesos de fato comem mais do que os correspondentes com peso normal, mas que a quantidade de comida que eles consomem é proporcional à sua maior massa corporal magra.
Portanto, os indivíduos obesos parecem comer de acordo às suas maiores dimensões corporais.
No entanto, existem subgrupos de indivíduos obesos que possuem padrões anormais de alimentação: aqueles que têm o transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP) e os com a síndrome do comer noturno (SCN).
Transtorno de compulsão alimentar periódica (TCAP)
Como definido no Anexo B do DSM-IV, pacientes com transtorno de compulsão alimentar periódica experimentam episódios de consumo descontrolado de grandes quantidades de comida não seguidos por qualquer comportamento compensatório não apropriado.
A compulsão alimentar também é acompanhada por sentimentos de angústia subjetiva, incluindo vergonha, nojo e/ou culpa.
Estimativas recentes de prevalência do TCAP na população americana indicam que 2% a 3% dos adultos em amostras comunitárias sofrem desse transtorno. Entre os pacientes obesos que procuram tratamento clínico para perda de peso, os índices de prevalência são em geral maiores, de 5% a 10%.
Estudos iniciais sobre componentes comportamentais do TCAP indicaram que as pessoas que se alimentavam compulsivamente ingeriam significativamente mais comida do que as pessoas obesas que não tinham compulsão alimentar, tanto quando instruídas a comerem compulsivamente como quando para comerem normalmente.
Além disso, pacientes com TCAP relatam um início mais precoce da obesidade e um percentual maior de sua vida gasto com dietas do que seus correspondentes obesos não portadores de TCAP.
Em termos dos componentes psicológicos do transtorno, os pacientes com TCAP possuem autoestima mais baixa e se preocupam mais com o peso e a forma física do que outros indivíduos que também possuem sobrepeso sem terem o transtorno.
Estudos sobre a comorbidade em TCAP mostraram que os indivíduos com o transtorno aparentam índices maiores de psicopatologia do que os indivíduos sem ele, especialmente depressão e transtornos de personalidade.
Além disso, parece que os níveis de psicopatologia exibidos pelos pacientes com TCAP estão associados ao número de episódios de compulsão alimentar que experimentam e não ao seu grau de obesidade.
Os tratamentos desenvolvidos para bulimia nervosa, incluindo a terapia cognitivo-comportamental e os medicamentos antidepressivos, são eficazes, pelo menos no curto prazo, para melhorar os sintomas afetivos e comportamentais do TCAP.
No entanto, na maioria dos casos, os pacientes obesos com TCAP não perdem uma quantidade clinicamente significativa de peso com esses tratamentos.
A síndrome do comer noturno (SCN)
O conceito de síndrome do comer noturno (SCN) foi originalmente elaborado por Stunkard como um transtorno com três componentes principais: anorexia matutina, hiperfagia vespertina ou noturna (quando plenamente consciente) e insônia.
Stunkard descreveu a SCN como uma resposta especial a um estresse circadiano que ocorria primariamente em indivíduos obesos. Também constatou que a SCN tendia a ser desencadeada pelo estresse e que seus sintomas diminuíam quando o problema era aliviado.
Estimativas atuais de prevalência para a SCN indicam que 1,5% da população americana sofre do transtorno, ainda que esse percentual cresça acentuadamente entre pessoas em tratamento em clínicas para obesidade (10%) e entre pacientes de cirurgia para obesidade (27%).
Aproximadamente 15% das pessoas que se identificam como possuidoras de compulsão alimentar possuem SCN, comparado com 20% dos que sofrem de TCAP.
Em um estudo de Birketvedt et al foram examinaos “comedores noturnos” e indivíduos-controle para determinar comportamentos específicos e características neuroendócrinas da SCN.
Achados comportamentais indicaram que os comedores noturnos consumiam mais calorias diárias do que os controles. No entanto, comedores noturnos consumiram 56% da sua ingestão calórica diária entre as 22 e 6 horas, ao passo que os controles consumiram somente 15% de sua ingestão nesse período.
Comedores noturnos acordavam significativamente mais vezes durante a noite do que os controles e, apesar de a metade dos despertares noturnos documentados terem sido acompanhados por ingestão alimentar, nenhum dos despertares dos controles envolveu alimentação.
Além disso, relataram um humor médio mais baixo do que os controles em um período de 24 horas e experimentaram um declínio contínuo no humor começando no período final da tarde (os controles não relataram o declínio).
Os trabalhos mais recentes sobre a SCN centraram-se no refinamento das características diagnósticas precisas do transtorno e na identificação das características associadas.
Um estudo tentou determinar as diferenças entre SCN e TCAP por meio da análise dos pacientes que sofriam de TCAP, SCN, de ambos e de nenhum desses transtornos alimentares, inscritos em uma instituição para perda de peso.
Os autores concluíram que pacientes com SCN podem representar uma importante subcategoria dos obesos, distinta dos que possuem TCAP.
Outro trabalho recente sobre as características da SCN demonstrou que o transtorno está associado à obesidade, depressão, baixa autoestima e diminuição da fome diurna em pacientes ambulatoriais obesos.
Além disso, pacientes ambulatoriais obesos com SCN têm tido menos êxito nos programas de redução de peso do que seus equivalentes obesos sem a SCN.
Embora os achados recentes sobre as características e critérios diagnósticos da SCN sejam promissores, muito trabalho tem que ser feito para atingir uma compreensão completa sobre a etiologia e demais características associadas ao transtorno.
Conclusões
Pesquisas sobre a obesidade no decorrer da última década deram duas lições aos clínicos, ambas com forte impacto nos conceitos sobre este transtorno e na abordagem clínica.
Em primeiro lugar, a revalorização da importância das contribuições genéticas para o início e a manutenção dessa condição, sublinham a utilidade de considerar os indivíduos obesos não como pessoas com falta de força de vontade, mas como portadores de uma vulnerabilidade biológica inata.
Em segundo lugar, o reconhecimento de transtornos alimentares clinicamente significativos tais como o TCAP e a SCN em alguns pacientes obesos permite a avaliação e o planejamento do tratamento de forma mais racional e individualizada.
Ao trabalharem com esses pacientes, os profissionais de saúde mental podem ser instrumentais na correção das concepções equivocadas dos pacientes sobre as causas de sua obesidade, na identificação e no manejo clínico da psicopatologia comórbida e no auxílio aos pacientes a estabelecerem metas razoáveis e a trabalharem para realizarem escolhas saudáveis de estilo de vida que levem a um maior bem-estar físico e psicológico.
Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462002000700014